Alice Melo -24/8/2012
 
Aprovada pelo Senado no início deste mês, nova lei de cotas (PLC 180/2008)
 aguarda sanção da presidente Dilma Rousseff para que seja colocada em 
prática. A medida que obriga todas as universidades e institutos 
tecnológicos federais a destinarem 50% de suas vagas a estudantes de 
escolas públicas e, dentro disso, 25% a candidatos pretos, pardos e 
índios; evidencia a debilidade do ensino básico no Brasil, mas 
representa um grande passo para a luta contra o preconceito racial no 
país.
 O texto começou a tramitar no Congresso no final dos anos 1990 e surgiu
 com intuito de reformular o sistema de ingresso universal, o 
vestibular. Mas o projeto foi sendo modificado com o tempo: na alvorada 
dos anos 2000, quando o Estado começou a implementar políticas públicas a
 favor de ações afirmativas, as cotas sociais e raciais passaram a ser a
 principal bandeira. E não é à toa: o Censo Escolar 2010
 realizado pelo IBGE aponta, por exemplo, que o Brasil tem 51,5 milhões 
de estudantes matriculados na educação básica, sendo 43,9 milhões, 
estudantes das redes públicas (85,4%). Do número total de alunos que 
frequentam o Ensino Médio, o Censo mostra que 50,9% deles são pretos ou 
pardos. No ensino superior público – que possui as mais conceituadas 
universidades do país - 87,4% dos estudantes são oriundos de escolas 
particulares. Pretos, pardos e índios variam conforme o estado.
 A historiadora Verena Alberti, coordenadora de documentação do CPDOC 
(FGV) e professora de História na Escola Alemã Corcovado (que fica no 
Rio de Janeiro), diz que é a favor das cotas raciais e sociais e explica
 que a aprovação da lei no Senado representa, sobretudo, uma reparação 
de uma injustiça histórica. “Agora que o Estado do Brasil é a favor da 
lei de cotas, está apresentando a responsabilidade de consertar o que 
estava errado. E muitas vezes a gente pensa que o que estava errado 
estava assim por herança da escravidão, como se fosse por inércia. Mas é
 importante ver que o Estado, depois de 1889, instituiu políticas 
diferenciando a população; estimulando a imigração, o embranquecimento. 
Nós nunca tivemos leis de segregação racial, mas tínhamos leis que 
proibiam manifestações afro-brasileiras, até a década de 1920, por 
exemplo”.
 Alberti, que coordenou um projeto sobre a história do movimento negro 
no Brasil com base em relatos orais, acredita que a adoção do sistema de
 cotas não vai enfraquecer o ensino superior brasileiro ou invalidar 
políticas de melhoria na educação básica pública e acrescenta: “O 
curioso é que somos orgulhosos da mistura cultural no Brasil, mas quando
 existe a mistura física, essa miscigenação não é tão valorizada. 
Continua havendo o preconceito racial. Ainda que raça seja um conceito 
biologicamente inexistente. Acho que há necessidade de pessoas se 
acostumarem que negros possam fazer parte das camadas médias da 
sociedade, porque enquanto isso não acontecer, pessoas vão continuar 
morrendo devido a crimes motivados por racismo”.  
Senado aprova PLC 180/2008 em seção realizada no dia 7 de agosto
O
 relator do projeto aprovado na Casa, senador Paulo Paim (PT/RS) afirma 
que o sistema de cotas nacional vai fortalecer o ensino superior em seus
 dez anos de vigência. “Hoje, ficou comprovado pelas pesquisas que os 
cotistas têm, na maioria dos casos, notas iguais ou maiores do que os 
não cotistas nas universidades que já adotam o sistema de cotas [seja 
ele qual for]. Não tem nenhuma injustiça nisso”. A opinião de Paim não é
 a mesma do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), o único que votou 
contra a aprovação do PLC na seção deste mês. Segundo ele, o projeto 
“impõe uma camisa de forças para todas as universidades brasileiras". 
Além de afetar a excelência do ensino e tirar a autonomia das reitorias 
acerca do modelo de ingresso.
A voz das pesquisas
 Apesar da opinião radicalmente contrária apresentada pelo senador Nunes
 Ferreira, a sociedade parece ser a favor do sistema de cotas, em sua 
maioria: em pesquisa
 realizada pelo Datafolha, em 2008, 51% dos entrevistados se disseram 
favoráveis às cotas raciais; quando a pergunta disse respeito às cotas 
sociais, 86% das pessoas apoiaram a medida. O apoio popular ganha mais 
força quando se analisa o desempenho de cotistas em universidades que já
 adotam alguns sistemas: alunos que entram na universidade por meio de 
cotas têm notas iguais ou até maiores do que os que utilizam o sistema 
universal. E os índices de evasão são praticamente os mesmos que os dos 
alunos não cotistas, se a universidade apresenta algum programa de apoio
 financeiro aos mais pobres.
 Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 
referentes ao biênio 2005-2006, cotistas obtiveram maior média de 
rendimento em 31 dos 55 cursos  da Unicamp e coeficiente de rendimento 
(CR) igual ou superior aos de não-cotistas em 11 dos 16 cursos  da UFBA.
 Os números se repetem em outros casos, conforme alerta a pesquisa 
elaborada pelo professor Jacques Velloso, da Faculdade de Educação da 
UnB [disponível aqui].
 “O povo brasileiro não é contrário às políticas de ações afirmativas, 
nem na sua versão mais polêmica, o programa de cotas. Quem as rejeita 
são as classes médias e as elites, inclusive intelectuais e alguns 
veículos de comunicação”, afirma o historiador Petrônio Domingues, 
professor visitante da Rutgers University (EUA). “São necessárias ações 
concretas para se enfrentar o problema da exclusão do negro no Brasil, 
mais do que ‘boas intenções’, retórica política e debates acadêmicos”, 
acrescenta.
 A antropóloga Yvonne Maggie, professora titular da UFRJ, é contrária à 
nova lei, porque acha que o governo, dessa forma, quer resolver o 
problema “a custo zero”. Em artigo publicado em seu blog 'A vida como ela parece ser',
 Maggie explica que apenas a entrada obrigatória de alunos pobres no 
ensino público superior não garante seu sucesso, já que o sistema vai 
continuar não oferecendo o apoio necessário. “Temo por esses jovens mais
 despreparados. Terão um longo caminho pela frente e não será fácil 
percorrê-lo. Já são sobreviventes do ensino médio. Já passaram pelas 
agruras para obter o diploma do ensino básico, cumprindo uma grade de 12
 disciplinas em média por ano. Na universidade enfrentarão obstáculos 
mais pesados. Não há no ensino superior nenhuma preocupação em formar os
 menos preparados e ajudá-los a adquirir a base necessária para cumprir o
 currículo enciclopédico que é a regra. Ninguém presta muito atenção, 
mas sabemos que os mais fracos vão ficando pelo caminho”.
Diferentes sistemas
 Em 2003, o governo do Rio de Janeiro aprovou a lei
 estadual que instaurava o primeiro sistema de cotas em ensino superior 
do Brasil: Uerj e Uenf adotaram a medida já no vestibular de 2004. Foi 
neste ano, aliás, que a UnB anunciou seu próprio sistema de ações 
afirmativas, seguida da UFBA. Há poucos meses, em votação marcante, o 
STF declarou o sistema de cotas raciais como constitucional, o que abriu
 portas para que o PLC saísse de vez da gaveta e fosse levado adiante.
 Evandro Piza, professor da Faculdade de Direito da UnB e um dos 
responsáveis pela criação do sistema de cotas na UFPR, anuncia que é a 
favor da nova lei porque ela vai obrigar as universidades que não 
adotavam qualquer sistema de inclusão social ou racial a passar a 
fazê-lo, mas se diz crítico com relação a alguns pontos. “A lei em si 
tem vantagem – impõe políticas de ação afirmativa direto às universidade
 que foram inertes. Isso é necessário. Porque a universidade é pública. 
Agora, por outro lado, tem uma coisa que se esquece. O debate 
qualificado. Cada estado tem uma necessidade diferente, por isso, o 
debate precisa ser diferente”.
 Piza diz que na Universidade de Brasília, quando o sistema foi 
implantado, percebeu-se que muitos alunos que ingressavam no ensino 
superior da região vinham de escolas públicas. Mas se via pouca mistura 
racial nos corredores. Por conta disso, 20% das vagas dessa universidade
 são destinadas a pretos, pardos e índios. Na UFPR, o modelo adotado 
destina 20% das vagas à escola pública e 10% a cotas raciais. “Sou 
contra as cotas destinadas à escola pública. E isso não é um argumento 
elitista. Ali se faz um filtro que não funciona sempre. Não pega as 
pessoas que tiveram chances diminuídas no ensino público, porque só 
cobra três anos cursados na rede. Na minha opinião, o número de anos 
tinha que aumentar. Para seis, por exemplo”. Além disso, ele critica o 
sistema de declaração de renda explicitado na lei, porque é passível de 
fraude.
 Bem ou mal, a lei está nas mãos da presidente Dilma Rousseff, que já 
tem acordo firmado com o Senado para aprovar o texto mantendo o veto ao 
artigo que diz respeito ao ingresso de cotistas no ensino superior sem 
vestibular, por meio da análise do CR obtido ao longo do ensino médio. 
Ou seja, para ingressar nas universidades públicas brasileiras, que 
ainda representam o que há de melhor no ensino superior no país, só 
fazendo o vestibular e tirando boas notas. Independente da cor da pele 
ou classe social. 
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