sexta-feira, 13 de agosto de 2010

EM 5 ANOS, NOVA ORLEANS RENASCE BRANCA

Folha de São Paulo - Mundo
São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2010

Maioria negra, retirada à força em megaenchente causada pelo Katrina em 2005, vê influência política se esvair

Prefeito da cidade é o 1º branco a ocupar o cargo desde 78; praticamente todos os órgãos eletivos locais embranqueceram
Gary Coronado - 30.ago.2005/ Associated Press
Moradores encaram inundação no centro de Nova Orleans
ANDREA MURTA
ENVIADA ESPECIAL A NOVA ORLEANS

A tragédia do furacão Katrina em Nova Orleans completa cinco anos neste mês com um legado que vai muito além das casas ainda destruídas da cidade: o equilíbrio de poder foi totalmente realinhado, e a clivagem racial, aprofundada.

A maioria negra, que sofreu retirada forçada durante a enchente ocorrida após o furacão, viu sua dominância sobre a política das últimas décadas ir se esvaindo até que praticamente todos os órgãos eletivos locais "embranqueceram".

Foi eleito neste ano o primeiro prefeito branco (Mitch Landrieu) desde 1978. Na Assembleia Municipal, só há um negro. Até o conselho de educação tem maioria branca. E não há hoje um líder político negro que reagrupe a comunidade. Antes do Katrina, as instituições tinham maiorias negras.

Moradores e estudiosos afirmam que a virada é resultado de um esforço deliberado. O primeiro plano de reconstrução da cidade previa fazer parques nos bairros negros devastados. Para onde os antigos moradores voltariam? De preferência, para lugar nenhum.

O plano acabou vetado, mas a reconstrução se focou nas regiões de maior renda.

Bairros turísticos e de negócios estão recuperados. Já a área do Baixo Distrito 9 (Lower 9th Ward), bairro negro que sofreu um verdadeiro tsunami quando as barragens se romperam e a água dos rios inundou Nova Orleans, segue cheia de mato e casas destruídas.

Quando a Folha visitou o bairro, um dos poucos presentes, Craig Converse, 40, nascido e criado ali, contou que voltara havia só pouco mais de um mês. "Aquele vizinho morreu na enchente, aquele outro também", dizia, apontando lotes vazios. "O resto não sei onde está."

Lance Hill, diretor do Instituto Sulista de Educação e Pesquisa da Universidade Tulane, desconfia das estimativas de população da cidade. "As cifras são infladas. É só andar no centro para ver o abandono." Ele rejeita os dados de que a população já voltou a corresponder a 80% da era pré-Katrina (355 mil). "De 30% a 40% dos pobres nunca voltaram."

O voto negro caiu junto. De até 65% do total antes do Katrina, passou a até 53% na última eleição.
CLIVAGEM

Hill, que é branco, define o motivo da mudança: racismo. Diz que a aristocracia branca de Nova Orleans nunca se conformou em perder o poder político pela mudança demográfica.

"Brancos ricos abertamente aproveitaram a oportunidade" do Katrina, diz. "Houve um movimento real para impedir a volta dos negros."

A cidade ainda é hostil aos desalojados. Faltam empregos, e o único hospital público continua fechado.

Para a advogada de direitos civis Mary Howell, "a polarização e a divisão racial estão mais profundas hoje do que há muito, muito tempo". Figura icônica na cidade, Howell lembra que "muita gente disse em 2005 que estávamos melhores sem [os negros]". "Esse é um legado muito doloroso do Katrina."


Até o especialista em reconciliação Ervin Staub, que atuou em Ruanda após o genocídio, diagnosticou "trauma étnico em massa".

Mas, se expôs uma disputa de poder, o furacão evidenciou a resiliência dos nativos. Uma pesquisa de 2008 indicou que 75% dos ainda desalojados queriam voltar. "O povo é quase inquebrável", diz Howell. "A determinação de lutar por suas casas e de ser daqui, lutar por este lugar, foi e é enorme."

MEMÓRIA
NEGROS FORAM OBRIGADOS A DEIXAR CIDADE


O furacão Katrina devastou Nova Orleans menos por causa da fúria da natureza do que pela incompetência humana. Autoridades ordenaram a retirada da população que não fugiu sozinha -pobres, principalmente negros, foram obrigados a ir a abrigos e, depois, a outros Estados.

Após enchente e exílio, artistas agora sofrem toque de recolher
DA ENVIADA A NOVA ORLEANS

Quando o Katrina devastou Nova Orleans em 2005, o músico Chris Davis, 25, foi forçado a ficar em Baton Rouge (Louisiana), longe da região pobre e negra do Baixo Distrito 9, onde cresceu.

Sua banda, a To Be Continued (TBC), com nove membros também de regiões de baixa renda, acabou espalhada pelos EUA, com membros deslocados para Califórnia, Virgínia e Texas.

Levou mais de seis meses até que se reencontrassem. "Quando voltamos para Nova Orleans, estava tudo em ruínas, mas as pessoas ficaram animadas de nos ver."

Logo voltaram a tocar. Desde 2006, a TBC se apresenta quase todas as noites nas ruas do turístico Bairro Francês.

Mas anos depois de sobreviver a enchentes e exílios, Davis e os tradicionais artistas de rua de Nova Orleans estão sendo obrigados a lidar com uma nova ameaça. A prefeitura resolveu impor um toque de recolher "antibarulho" às 20h, mesmo nos pontos mais famosos pela música noturna.

Os artistas resistem. A TBC já foi interrompida pela polícia três vezes, apenas para voltar no dia seguinte.

Para Lisa Palumbo, agente da banda, o toque de recolher "é mais um golpe" contra gente que já sofreu o suficiente. "A música é uma parte importante da cidade e um marco fundamental da nossa recuperação após o Katrina", disse ela à Folha.

FUTURO INCERTO

A pressão surpreende quando se leva em conta que a presença de músicos de rua em Nova Orleans ainda nem retornou aos níveis pré-furacão. Segundo o Conselho de Arte de Nova Orleans, 25% deles seguem ausentes.

O índice de exílio entre músicos é maior do que o de outros tipos de artistas, explicado pelo fato de que a maior parte dos músicos é oriunda de bairros de renda baixa.

Em outras áreas criativas, o furacão chegou a inflar uma bolha artística na cidade, com fotógrafos, cineastas e escritores usando o trabalho para colocar para fora os horrores vividos.

Eles também se beneficiaram do grande fluxo de dinheiro que invadiu Nova Orleans nos primeiros dois ou três anos após a tragédia, proveniente do governo e de doações privadas.

Só que agora a fonte começa a secar. O Katrina não é mais novidade, e a recessão afastou as contribuições.


Galerias luxuosas da tradicional rua Julia relatam que as vendas dois anos após o furacão eram melhores do que as atuais.


Para os músicos, esse é mais um motivo para manter os sons no ar. "A música é a alma desta cidade", diz Davis. "Se acabar com ela, o que é que vai restar?" (AM)


Crimes pós-Katrina começam a ser julgados e punidos
DA ENVIADA A NOVA ORLEANS

Com reputação de ter um dos corpos policiais mais corruptos dos EUA, só agora Nova Orleans está levando a julgamento alguns dos acusados por crimes cometidos contra a população no caos pós-Katrina.

O prefeito da cidade, Mitch Landrieu, solicitou intervenção da Justiça federal no departamento.

O caso mais notório de violência ligada ao furacão é o do tiroteio da ponte Danziger. Quatro policiais foram acusados em julho passado e poderão ser condenados à morte pelo ataque a civis negros desarmados que deixou dois mortos e quatro feridos.

Entre as vítimas havia um homem com deficiência mental e um adolescente.

Outros dois policiais foram acusados por participar em uma tentativa de acobertar o episódio.

A advogada Mary Howell, que representa a família de uma das vítimas, afirma que "há muitos outros casos do tipo que nunca vieram à tona". "Foram encontrados muitos corpos com marcas de tiros nos dias após o furacão, vários dos quais nem sequer foram identificados. "

Nova Orleans recebeu também reforços de militares e até de mercenários terceirizados após o Katrina. Há relatos de abusos por parte de todos eles - a maioria jamais foi investigada. (AM)

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