Especial ( link para matéria clicar aqui )
Unidos pelo futebol...
...e pelo DNA
Os estudos genéticos iluminam a rota migratória da humanidade.
Os ancestrais de Luis Fabiano e de Charles Miller, introdutor
do futebol no Brasil, saíram juntos da África, agora palco
da grande festa do esporte
Fábio Altman, de Johannesburgo
Montagem com fotos de Paulo Vitale e Elsar/Shutterstock/RF |
LUIS FABIANO O craque da seleção brasileira: ele vai brilhar no continente onde nasceu o Homo sapiens, ancestral de toda a humanidade |
Luis
Fabiano Clemente tinha 13 anos de idade quando foi levado para treinar
em seu primeiro clube, o Guarani de Campinas. Ele era um dos grandes
destaques de um campinho lindamente apelidado de Buracanã. Criado pela
mãe e pelo avô materno, Benedito, o Ditão, dava trabalho na escola e
logo se empregou em uma oficina mecânica. O adolescente inquieto que se
tornaria centroavante da seleção de Dunga na África do Sul se alegrava
mesmo era no Buracanã praticando o jogo que Charles Miller, falecido em
1953, apresentara ao Brasil 100 anos antes e que foi aqui adotado não
apenas como esporte, mas como religião nacional.Charles William Miller,
filho de um escocês que chegou ao Brasil para ajudar a administrar a
estrada de ferro Santos-Jundiaí e de uma brasileira de família inglesa,
retornou de uma viagem de estudos a Southampton, na Inglaterra, no fim
de 1894, com peças curiosas na mala. Segundo relato do escritor e
historiador John Mills, Miller trouxe na bagagem um livro de regras do
Association Football, duas bolas de capotão, um par de chuteiras e uma
bomba de ar. Em 14 de abril de 1895, no campo da Várzea do Carmo, em São
Paulo, ele organizaria a primeira partida de futebol oficial do Brasil,
entre as equipes The GasWorks Team e The São Paulo Railway Team.
Milhões
de brasileiros de seis gerações devem ao filho de escocês as emoções
insubstituíveis proporcionadas pelo futebol. Centenas de craques saíram
dos Buracanãs para a glória, a riqueza e a fama mundial. Para celebrar o
encontro, na verdade, o reencontro de Luis Fabiano com Charles Miller e
a África, de onde saíram os antepassados comuns deles – e de toda a
humanidade –, VEJA decidiu valer-se dos mais modernos métodos da
genética para traçar as rotas migratórias das correntes humanas que
produziram o artilheiro e o pioneiro do futebol.
VEJA
pediu a dois descendentes do pioneiro – Charles Rudge Miller, seu neto,
e Angela Susan Fox Rule, sobrinha-bisneta – e a Luis Fabiano que
colhessem material genético e permitissem que ele fosse estudado em
laboratório. Todos concordaram, e as células (raspadas da parte interna
da bochecha) foram submetidas ao teste conhecido como DNA de
ancestralidade pelo laboratório Gene, de Belo Horizonte, um dos mais
reputados do mundo. Os avanços desses testes de DNA – os kits podem ser
encomendados pela internet – fizeram da antropologia genética um dos
métodos mais precisos e rápidos de investigação da evolução e das rotas
migratórias da humanidade a partir de seu berço africano.
A
Copa do Mundo da África do Sul, a primeira no continente negro, está
eivada de simbolismos – a começar pelo fascínio de ser realizada em um
país que, até vinte anos atrás, abrigava uma das mais violentas
atrocidades do século XX, o regime racista do apartheid, derrotado pela
liderança de um personagem mítico, Nelson Mandela. É fascinante também
imaginar que jogadores e torcedores das 32 seleções estejam com a
atenção voltada para o continente onde o Homo sapiens surgiu. Ao
esmiuçar a jornada genética de Charles Miller e Luis Fabiano – um
branco, genuinamente europeu, outro mulato, descendente de escravos
africanos –, esta reportagem demonstra a estupidez da "ciência das
raças" que, no século XX, embasou o mal absoluto do Holocausto com seus 5
milhões de vítimas "biologicamente inferiores" e deu sustentação ao
apartheid sul-africano. Hoje, a melhor ciência informa que as raças são
variações cosméticas do núcleo genético humano, incapazes sozinhas de
determinar a superioridade de um indivíduo ou grupo sobre outros. Diz
Sérgio Pena, médico fundador do laboratório Gene: "Não somos todos
iguais, somos igualmente diferentes".
Para
desenhar o mapa que ilustra esta reportagem, foram usados os resultados
dos exames de ancestralidade paterna dos personagens. VEJA encomendou
também exames que permitem traçar a rota das linhagens maternas de Luis
Fabiano e Charles Miller. A linhagem materna é obtida pelo estudo das
mutações no DNA mitocondrial que cada pessoa herda apenas da mãe. Ela é
menos precisa que as marcas deixadas pelo caminho evolutivo no
cromossomo Y, definidor do sexo masculino. A ancestralidade materna
mostra que Luis Fabiano teve uma tataravó da etnia banto, que é
predominante na maior parte do continente africano. A linha materna de
Charles Miller remonta ao que parece ser a origem comum de quase 100% do
DNA mitocondrial, uma Eva mitocondrial africana que viveu entre 11 000 e
15 000 anos atrás.
Em
1972, o biólogo americano Richard Lewontin demonstrou experimentalmente
que 85,4% da diversidade dos genes humanos ocorriam entre indivíduos de
uma mesma população. Ou seja, quando se examina o núcleo genético, um
sueco pode ser mais diferente de outro sueco do que de um indivíduo
negro de origem africana. Sérgio Pena faz um curioso raciocínio:
"Imagine que um cataclismo nuclear destruísse toda a população da Terra,
deixando ilesa apenas a população africana. O que nos sobraria em
termos de riqueza genética? Quase tudo, porque as populações africanas,
vistas muitas vezes como homogêneas, são bastante diversificadas. No
exemplo catastrófico que estamos utilizando aqui, 93% da diversidade
total da humanidade seria preservada. Se apenas a população zulu da
África do Sul sobrevivesse, mesmo assim 85% da variabilidade da raça
humana estaria presente nos genes dos indivíduos".
O
italiano Luigi Cavalli-Sforza, geneticista que primeiro organizou uma
árvore genealógica da espécie humana e a relacionou com a evolução das
línguas, acredita que sempre fomos induzidos pela aparência a considerar
que "as raças são puras (isto é, homogêneas) e muito diferentes entre
si". Escreve ele em Genes, Povos e Línguas: "É difícil encontrar
outro motivo para explicar o entusiasmo dos filósofos e cientistas
políticos do século XIX, como Gobineau e seus seguidores, pela
preservação da pureza racial. Como só podiam estudar os traços visíveis
na época, não era absurdo imaginar que raças puras existissem. Hoje,
porém, sabemos que as coisas não são bem assim e que seria praticamente
impossível criar uma raça pura. Para obter com efeito uma ‘pureza’
parcial (ou seja, uma homogeneidade genética que nunca ocorre
espontaneamente em populações de animais superiores), precisaríamos de,
no mínimo, vinte gerações de endogamia".
Charles
Miller e Luis Fabiano são diferentes na aparência, mas não no seu
coração genético. O estudo comparativo do DNA de ambos mostra que os
ancestrais deles começaram juntos a grande aventura migratória da
humanidade há cerca de 50 000 anos. Quase 5 000 anos depois, já fora da
África, o último ancestral comum de ambos deu origem a descendentes que
escolheram rumos diferentes na vida. Eles começaram a carreira-solo com
absolutamente a mesma bagagem genética. Como é sabido, o DNA é uma
molécula capaz de se duplicar – ou seja, fazer uma cópia de si mesma.
Como toda reação bioquímica, a duplicação do DNA não produz cópias
absolutamente perfeitas. O processo sofre influências externas de origem
química, da radiação solar e de outras fontes radioativas. Essas
pequenas imperfeições tendem a ocorrer seguindo determinado padrão. Elas
vão se acumulando com o tempo e tornam-se variações passadas como
herança genética para os descendentes, criando uma linhagem. O
isolamento entre as populações que escolheram rotas migratórias
diferentes impede que as variações acumuladas por um grupo sejam
compartilhadas com o outro – o que, a longo prazo, eliminaria as maiores
diferenças pela miscigenação e as duas linhagens se fundiriam em uma
só.
As
diferenças entre grupos isolados geograficamente tendem a se acentuar
também pelas razões expostas por Charles Darwin e seus sucessores no
estudo da Teoria da Evolução. As variações genéticas ocorrem ao acaso e,
com o tempo, algumas se tornam predominantes em uma população porque
elas se mostraram vantajosas para aquela espécie naquele determinado
ambiente. Tome-se o exemplo das peles claras e escuras. O Homo sapiens tinha
uma população inteiramente formada por indivíduos de pele escura quando
saiu da África. As variações genéticas que tendem a produzir pele clara
certamente ocorreram indistintamente em todos os contingentes humanos.
Mas elas só se firmaram como mutações vantajosas para os grupos humanos
que foram povoar as latitudes mais baixas do globo terrestre, onde o
efeito protetor da melanina, o pigmento que dá cor escura à pele, é
desnecessário – e até prejudicial por filtrar a fraca insolação das
regiões frias, impedindo a absorção da vitamina D garantida pelos raios
ultravioleta da luz solar.
"Os
resultados dos exames de ancestralidade de Charles Miller e Luis
Fabiano são bonitos porque confirmam, cientificamente, o que
imaginávamos encontrar", diz Sérgio Pena. É uma beleza, do ponto de
vista da antropologia genética, e demonstra a utilidade de entendê-la e
esperar que, um dia, ela ajude a desvendar o enigma clássico da condição
humana que é a eterna desconfiança do outro, do diferente, do
estrangeiro com sua aparência, cultura e religião estranhas. O DNA nada
sabe desse sentimento. No seu coração genético, a espécie humana é tão
mais forte e sadia quanto mais variações apresenta. Se para a humanidade
o inferno sempre foram os outros, para o DNA o inferno é o fim das
diferenças.
Ipon-Boness/Sipa Press |
A ÚLTIMA PARADA A hoje urbanizada Eritreia foi a porta de saída mais provável da África para os ancestrais comuns de Luis Fabiano e Charles Miller |
Fotos AFP e Time Life Pictures/Mansell/Getty Images |
ARTE NA CAVERNA Como mostraram Darwin e seus seguidores, o clima frio da Europa chancelou as mutações de pele clara nas populações que pintaram essas cavernas |
O drible veio de fora
Driblar,
para não fugir da linha genética, está no DNA do brasileiro. Mas quem
introduziu o recurso no Brasil foi um escocês quase desconhecido por
aqui, embora celebrado por lá. Archie McLean, funcionário de uma
tecelagem escocesa enviado ao Brasil em 1912 para trabalhar, ganhou fama
entre os praticantes do nascente esporte bretão pela velocidade com que
passava os pés por cima da bola e pela agilidade com que trocava passes
com o companheiro ao lado, nos primórdios da tabelinha. Conhecido como A
Pequena Gazela, pelo porte dentro de campo, é personagem injustamente
secundário. McLean aparece numa fotografia da seleção paulista de 1914
ao lado de Arthur Friedenreich – não se tem notícia de que tenha sido
identificado, e a rara imagem sempre foi usada para mostrar o brasileiro
de origem alemã. "McLean surpreendia com seu estilo de jogo,
habilidoso, o avesso do que vigorava na Inglaterra e na Escócia", diz
John Mills, autor da biografia de Charles Miller. Ali, com chuva em
profusão, as equipes eram forçadas a mandar a bola para o alto, na
gênese do chuveirinho, que marca o futebol inglês desde sempre (embora
tenha melhorado muito com a chegada de jogadores e treinadores
estrangeiros). A bola alçada foi recurso inovador porque era impossível
fazê-la correr na grama, encharcada. No futebol, tal como na evolução de
nossa espécie, o ambiente faz a diferença e molda a vida. É o
darwinismo aplicado ao esporte mais popular do mundo.
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Em outros palcos
Shakespeare Em A Comédia dos Erros, o maior de todos os dramaturgos colocou o futebol em campo na fala do escravo Drômio: "Serei, acaso, redondo assim, para me dardes pancada sem parar, como se eu fosse uma bola de futebol?" |
É mais fácil identificar o DNA que nos remete à origem da humanidade que o DNA dos primórdios do futebol. Há muita controvérsia, embora os historiadores recentemente tenham chegado a algum acordo. Há relatos de uma modalidade semelhante por volta de 3 000 anos antes de Cristo, entre os militares chineses. Depois das guerras, como modo de celebração, eles formavam equipes para chutar cabeças decepadas de soldados inimigos. Com o tempo, as cabeças foram sendo substituídas por bolas de couro revestidas de cabelos. No Japão, um pouco mais tarde, nasceu o kemari, com oito jogadores para cada lado e, pela primeira vez, redes feitas de fibras de bambu. Depois, já no século I antes de Cristo, foi a vez dos gregos de Esparta, que usavam a redonda feita de bexiga de boi cheia de areia ou terra.
Espírito de
seu tempo, as versões antigas do futebol caminhavam de mãos dadas com a
sociedade. Na Idade Média, violência era a regra, como se todos fossem
zagueiros portugueses a caçar Pelé na Copa de 1966. O soule (ou
harpastum) tinha 27 militares de cada lado. Eram permitidos socos,
pontapés e rasteiras. O gioco del calcio italiano, também medieval,
tornou-se popular por ser praticado em praças públicas, e não mais em
campos escondidos. Na Inglaterra, mãe do futebol, o rei Eduardo II,
assustado com a agressividade, proibiu a brincadeira, em 1314, que
renasceria entre os nobres, agora sem pancadaria.
Era o início
da civilização no futebol – ainda que, mesmo hoje, os brancos
sul-africanos usem um provérbio segundo o qual o rúgbi, esporte de sua
predileção, "é um jogo criado pelos hooligans e jogado por nobres,
enquanto o futebol é um jogo criado por nobres e jogado por hooligans".
Em A Comédia dos Erros, escrita por volta de 1592, William Shakespeare
pôs o futebol em campo como metáfora. Em uma das cenas da peça, o
escravo Drômio de Éfeso reclama dos abusos aos quais o submetem. "Serei,
acaso, redondo assim, para me dardes pancada sem parar, como se eu
fosse uma bola de futebol? Sem mais nem menos, me aplicais pontapés. A
durar isso, tereis de me mandar forrar de couro." Apenas no século XVII,
finalmente surgiram as regras muito próximas às que vingaram até hoje.
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