Devemos arrebitar o nariz para as obras de Lobato?
Rute Miriam ALBUQUERQUE, Coordenadora do Programa de Educação do Núcleo de Estudos Negros
O Núcleo de Estudos Negros, com sede em Florianópolis, em atuação plena desde 1986, cujas contribuições têm como eixos: formulação de políticas públicas que incidam na erradicação do Racismo e de práticas preconceituosas, produção de literatura especializada, formação de professor@s e pesquisas firmadas na concepção de que a pluralidade cultural em no sso País almeja uma Pedagogia Multirracial, vem a público apoiar o Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre o livro Caçadas de Pedrinho. Compreendemos como de suma importância este estado de vigilância para com as tensões no campo das relações étnico-raciais. Somos contra a censura, especialmente quando vinculadas às produções culturais. O Parecer não a enseja, nem ao menos a orienta, nesta discussão.
A construção da invisibilidade que se dá por vias políticas, religiosas (entre outras) e, portanto, formativas, a que estamos sujeitos, força-nos a acreditar numa democracia racial, e numa inexistência para/do Racismo em nosso País. Portanto, há que se considerar que a desconstrução dela, ou seja, um olhar atento para o modo como as diferenças de marcas biotípicas são interpretadas, também precisa ocorrer por vias tão distintas mas igualmente formativas, como o hábito da leitura, o acesso aos bens produzidos culturalmente em distintos tempos e por sujeitos em contextos diversos. Queremos sim, formar leitores e leitoras, de mundo, de palavras polifônicas, e de literatura. Mas queremos, igualmente, que as leituras efetuadas, em camadas, sejam capazes de produzir nos sujeitos, a interpretação do que por vezes se encontra subsumido, disfarçado, “adornado” como se fosse arte. E isto não se dá naturalmente, posto que as práticas de letramento exigem intervenção de sujeitos mais experientes, entrelaçadas com repertórios ampliados de experiências diversificadas. Avaliamos que a sugestão da parecerista Dra. Nilma Lino Gomes pode produzir exatamente isto: que a obra seja lida, relida, contextualizada, e historicizada para além da genialidade do autor, superando práticas racistas que perduram por quase cinco séculos.
O espaço para a discussão, em territórios democráticos, precisa estar sempre aberto. E atento! E a discussão precisa ser iniciada ou continuada, porém, apoiada em conhecimento de causa, e no caso, as obras de Lobato. Quem leu, por exemplo, O Presidente Negro percebe no autor um homem à frente do seu tempo, construído e informado para bastante além da instrução formal. Homem que viajava e fazia de suas viagens aprendizados, e os repartia conosco, através da literatura. Isto não o exime, e, destarte, ameniza a escolha que fez pela eugenia. Prova-nos, ao contrário, que Arte não é neutra, assim como as ciências não o são, e rev elam-nos que mesmo gênios ainda estão em construção, ainda precisam de outros de nós, e tantos, para afinar nossas relações, pautando- nos por sensibilidade e cuidado com os outros, independente do tempo ou do recorte histórico.
A sociedade exige que a distribuição de livros seja executada com rigor e responsabilidade, uma vez que não se tratam de livros “doados”, mas adquiridos com recursos públicos, e ao público destinado. Além do mais, imputar à literatura, quer sejam as clássicas ou as contemporâneas, o limite de que elas teriam (apenas) a finalidade didática é desconsiderar o poder que as literaturas exercem na formação das capacidades psicológicas superiores humanas. Temos dúvidas se “aquele Brasil de Monteiro Lobato era outro” no que concerne ao alcance de oportunidades a todos e todas. Por tais motivos, afirmamos nosso apoio ao Conselho Nacional de Educação, uma vez que não aprovamos o banimento (mesmo que venha disfarçado em diferentes materialidades), porém, endossamos a necessária recomendação quanto à nota crítica, já suficientemente justificada pela própria relatora, pois todos os esforços para se trazer à tona a importância desta temática são necessários. Temos a convicção de que o acalorado debate em torno de importante questão, ainda que tenha sido alimentado por recortes e distorções de informações, promoverá o que todo escritor deseja: que suas obras sejam lidas, ou revisitadas, e que contribuam para outro olhar, mais sensível e apurado frente aos desafios de nossa construção rumo à humanização das diferenças.
Roberto Borges
Coordenador do NEAB CEFET/RJ
Coordenador dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do CEFET/RJ (DIPPG)
1º Secretário da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros
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