Se
o crime for violento ou contra a vida, o perito poderá determinar uma
medida de segurança com internação em algum Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico (HCTP), que eram os antigos manicômios
judiciários. Ou determina uma medida punitiva com tratamento em regime
aberto, por exemplo, quando a pessoa trabalha em alguma comunidade ou
Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Sendo assim, a internação
compulsória é aquela determinada pelo juiz a partir de um caso
específico de crime cometido ou por ser cometido.
Genericamente,
tanto as autoridades de São Paulo como do Rio de Janeiro falavam a
respeito da internação compulsória de forma inadequada. Várias pessoas
do campo da psiquiatria e do campo jurídico disseram que a utilização do
termo estava sendo equivocada. Não se pode pegar uma leva de pessoas na
rua e carregar para uma instituição psiquiátrica. Isso é, no mínimo, um
ato policial, e não jurídico.
Informe ENSP: Então, o que
realmente está acontecendo nas cidades, em particular com relação às
drogas, não é internação compulsória?Paulo Amarante: O
que está sendo feito não é a compulsória, mas também não pode ser
chamada internação involuntária. Essa modalidade é feita a partir de um
familiar ou uma autoridade, que solicita tratamento para alguém que
esteja incomodando a ordem pública. Essa pessoa é recolhida contra sua
vontade e, caso não tenha condição de discernimento do tratamento, outra
pessoa pode assinar por ela.
O que está acontecendo aqui é uma
internação involuntária coletiva, e até mesmo sem um critério mais
específico de avaliação psiquiátrica, em prontos-socorros. Agora, as
autoridades pararam de usar o termo internação compulsória para falar de
involuntária, porque teriam mais autonomia de atuar sem necessidade de
um juiz.
Um médico pode fazer a internação involuntária, porque
ele tem o poder de analisar caso a caso, escolher o melhor tratamento, e
há um familiar que requisitou essa ajuda.
Informe ENSP: O
que a comunidade psiquiátrica pensa com relação a essas internações de
usuários de crack? O que está sendo feito atualmente não é solução.Paulo Amarante: Como
a gente tem esse papel de formador de opinião, venho tentando fazer uma
discussão sobre a determinação social da questão. Por que, de repente,
há mais vagabundos, mais criminosos, mais drogados nas ruas? Precisamos
fazer uma análise mais profunda a respeito do que está ocorrendo. A
questão do crack, ou das drogas, em geral, é um indicador social de que
algo está mudando.
Por exemplo: Uma pessoa está com dengue; o
médico de família está cuidando dela e averiguando se há mais casos da
doença em uma comunidade. Esse médico pode tratar cada pessoa
individualmente, mas percebe que há um foco de contaminação na região e
solicita outro tipo de atenção. E isso precisa ser pensando para as
drogas.
Informe ENSP: Então, o crack é um problema de saúde pública.Paulo Amarante: Não
só da saúde pública como de organização social, que vai desde toda a
estrutura de desorganização das relações do trabalho, de aumento de
desemprego, de trabalho informal, de domínio desse mercado informal de
trabalho por grupos, gangues ou milícias. A estrutura da família também
vem mudando ao longo dos anos. As mulheres, antigas cuidadoras do lar,
cada vez mais trabalham fora e cuidam menos do lar; e, na questão de
gênero, temos o pai, que não assume seu papel. Além disso, a estrutura
das escolas, que não está mais adequada. Há uma série de aspectos, e não
podemos só atribuir às pessoas o consumo de drogas. O Estado tem de
pensar nisso.
Por outro lado, há a questão da importância da
economia do tráfico. Hoje, é uma ingenuidade não saber que a grande
lavagem de dinheiro, o grande capital envolvido em tudo isso, está
ligado ao tráfico humano, de armas e outras coisas mais. É uma economia
impulsionadora de várias iniciativas, não é mais só o pequeno vendedor. É
um mercado que está em expansão, pegando cada vez mais trabalhadores
jovens para atuar nele, com ofertas mais imediatas de crescimento.
Informe
ENSP: Temos também a questão do pequeno usuário de drogas, que se torna
um pequeno traficante para os que estão em seu meio. Ele, então, acaba
por encontrar aí uma forma de renda.Paulo Amarante: Exatamente.
Há uma mudança de papel econômico e sociológico. No campo mais
direcionado à saúde mental, temos uma desestruturalização da rede. Desde
a aprovação da
Lei 10.216,
da reforma psiquiátrica em 2001, a grande maioria dos profissionais não
a conhece. Como professor, dando aulas no Brasil inteiro, apresento a
Lei para alunos que nunca a tinham lido. Muita gente não sabe o que ela
representa no campo da transformação de um modelo de assistência, das
práticas de saúde etc.
O desinvestimento em uma cidade como o
Rio de Janeiro é horrível. Temos hoje 12 Caps funcionando. Atendendo 24
horas, apenas um. Esse desinvestimento reflete a ideia das políticas
neoliberais de enxugamento do Estado, com a famigerada Lei de
Responsabilidade Fiscal que não se pode contratar; quando contrata, há
enorme precarização do trabalho.
Comumente, como já mencionei,
essa precarização do trabalho causa uma reserva de pessoas desesperadas
por alguma possibilidade, em busca de renda e de melhoria de vida, como
também gera um mercado profissional muito desqualificado e instável.
Temos então uma estrutura precaríssima tanto para cuidar de pacientes
com transtornos mentais em geral, como para álcool e drogas. Não
tínhamos quase nada no Estado do Rio de Janeiro, apenas dois ou três
serviços universitários fazendo atendimento muito pontual. E não
tínhamos uma rede. O papel se repete no Brasil inteiro. Agora que a
questão aparece, existe uma pressa em dizer que os serviços existentes
não funcionam; outro agravante é a criação de um mercado privado,
paralelo à política pública, com recursos públicos, que é o das
comunidades terapêuticas.
Informe ENSP: A ampliação do
papel das comunidades terapêuticas faz parte do polêmico Projeto de Lei
em tramitação na Câmara dos Deputados. Ele pretende, entre outras
coisas, criar um cadastro de usuários de drogas no país, de autoriado deputado Osmar Terra (PMDB-RS), correto? Mas os Caps existentes não poderiam ser utilizados para isso?Paulo Amarante: Essa
ampliação das comunidades terapêuticas é resultado da entrada dos
interesses de igrejas, fundamentalmente evangélicas, e de todo o lobby
evangélico existente na Câmara, que acabou virando outro grande mercado,
isto é, a fé e a religião, totalmente desregulado.
Por trás
desse ‘movimento de higienização’, como falei, há uma precarização da
sociedade como um todo. Por outro lado, uma política de redefinição do
espaço urbano. A Copa e os Jogos Olímpicos são apenas pretextos para as
autoridades fazerem o que estão fazendo. O que está havendo é a
concentração maior de renda, e um dos mercados mais promissores é o
imobiliário. Em algumas cidades, como SP ou RJ, existe um projeto
urbanístico de revitalização dos espaços urbanos, com grandes
investimentos no mercado imobiliário. E é necessário que seja feita a
‘reforma Pereira Passos’, como foi o caso do Rio de Janeiro na época de
Oswaldo Cruz, no início do século XX, com a retirada das pessoas do
Centro da cidade. Foi quando nasceram as favelas e, hoje em dia, se
repete com a criação das comunidades terapêuticas.
A questão do
crack, das drogas em si e da internação involuntária está em contexto
muito ampliado. No nosso nível de competência, se podemos dizer, é
necessário que se invista mais em uma rede de serviços que se mostram
competentes. A Helena Furtado esteve em 2012 aqui, no curso de
especialização em Saúde Mental, e falou sobre a experiência de São
Bernardo. Existe sim a possibilidade de utilizarmos os Caps, com
atendimento para álcool e drogas 24 horas, com internação em situação de
crise, as pessoas sendo tratadas, sem a necessidade de um modelo que
entende como solução a internação integral, involuntária, por meses,
como se isso fosse incutir nas pessoas o desejo de se tratar.
Temos demonstrado que, às vezes, é mais eficaz o tratamento voluntário,
quando a pessoa é convencida a se tratar e cria uma relação de confiança
e vínculo, do que outros tipos de internações. A pesquisa que o
professor Dartiu Xavier faz na Unifesp mostra que as pessoas que saem
dessas internações involuntárias, compulsórias e obrigatórias voltam
direto para as drogas.
Outra questão do nosso nível de
competência que fazemos é a crítica às instituições totalitárias. O
sociólogo francês Robert Castel, que trabalha nessa linha de
globalização, do neoliberalismo no mundo e teve importância fundamental
no campo da saúde mental, em seu livro
A metamorfose da questão social –
um dos mais importantes para pensar esse capitalismo pós-moderno –,
ressalta a questão das instituições totalitárias. Imagina o que é a
estrutura de uma instituição que vai cuidar de 20, 30, 100, 1.000
pessoas recolhidas compulsoriamente, impossibilitadas de sair? Imagina o
nível de violência para coagir as pessoas a se manterem nessas
instituições?
O Conselho Federal de Psicologia fez uma pesquisa
em 2012 sobre as comunidades terapêuticas, e todas tinham graves
violações de direitos humanos.
Informe ENSP: Então, os direitos humanos nessas instituições são praticamente nulos?Paulo Amarante: Nessas
comunidades, foram encontradas pessoas enterradas até o pescoço, que
eram obrigadas a carregar pedras e serem acordadas de madrugada para
tomar banho frio, criando uma mistura de prática religiosa de
purificação e exorcismo com a prática de terapia cognitiva
comportamental de choque, gerando medo nelas.
Informe
ENSP: Tudo isso vai contra o trabalho que vem sendo feito nos últimos
25, 30 anos no Brasil em prol da reforma psiquiátrica.Paulo Amarante: Tudo
o que nós, no Brasil, lutamos contra, não só no campo da saúde mental,
mas também na questão dos direitos humanos, da cidadania. A ascensão do
pastor Marco Feliciano à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados é um aspecto que toda a sociedade brasileira
deveria reagir com muita indignação e resistência e não aceitar. Este é
um sinal de que algo muito profundo está mudando, de toda luta nossa
pela democratização, pela Constituição.
Informe ENSP: Com todo esse panorama, você acredita que a legalização das drogas é uma solução?Paulo Amarante: Eu
compartilho da visão da juíza Maria Lúcia Karam, integrante da
Associação Juízes para a Democracia, que afirma que, para liberar, tem
de liberar todas as drogas. Não dá para liberar uma e não a outra. Só
que a legalização é o princípio, princípio este que compreende que
existe menos prejuízo para a sociedade que legaliza do que para aquela
que não legaliza. Isso porque a ilegalidade leva ao domínio do mercado
pelo tráfico. O tráfico implica outros interesses e maior violência para
a sociedade, com poder financeiro utilizado em outros campos. Isso sem
falar da utilização também no mercado do tráfico de trabalhadores, que é
muito mais prejudicial, porque são pessoas que se expõem ao risco muito
maior de deteriorização da vida.
O assunto é muito difícil e
complexo; porém, a legalização é o princípio que criaria menos
problemas. Com ela, seria possível ter regulamentação de produção, de
garantir níveis de ‘qualidade’ dos produtos. Hoje em dia, temos drogas
misturadas aos produtos mais tóxicos possíveis, como querosene, por
exemplo.
É um cinismo falar que a legalização da maconha irá
causar o aumento dos usuários. Com a liberação, seria possível haver
salas de uso seguro, a pessoa não precisaria se esconder e se submeter a
situações de risco para comprar as drogas. Isso não significa que
teremos mais dependentes químicos. A proibição nunca diminuiu o número
de usuários, pelo contrário. Criou um mercado e estratégias para chegar
ao usuário. Não existe nenhuma instituição onde não entre a droga, seja
ela psiquiátrica, penitenciária, educacional.
Informe
ENSP: Voltando ao Projeto de Lei de autoria do deputado Osmar Terra, um
dos pontos é a criação de um cadastro do usuário de drogas. Qual é sua
opinião sobre isso? Paulo Amarante: Esse
projeto do Osmar Terra é muito surpreendente, porque ele foi um
militante do movimento da reforma sanitária, integrante do quadro
formulador das políticas do SUS. Então, eu vejo esse projeto como um
retrocesso, porque é de maior criminalização, e, quanto maior a
criminalização, a estigmatização, piores são os resultados e pior o
envolvimento dos usuários em tratamentos, o que aumenta ainda mais a
barreira da ideia do drogado como pessoa indesejada e inimiga pública da
sociedade. Essa pessoa é alguém que queremos tratar e cuidar. Eu
entendo como retrocesso. Hoje, está havendo uma grande mobilização, e a
própria Abrasme está envolvida contra isso.
Eu acredito que esse
projeto acabe passando na Câmara, principalmente por conta do lobby do
mercado evangélico, e isso nos faz pensar nas alianças políticas e que
tipos de projetos possam acabar passando no país. Veremos muitos
retrocessos na questão dos direitos humanos.
Esse mesmo
presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados tem posição homofóbica. Hoje, existe a tendência das igrejas
evangélicas em tratar o homossexualismo como uma doença, para depois
começar a ocorrer a internação compulsória ou involuntária, ou qualquer
coisa, já que é uma doença que a pessoa perde sua capacidade de
discernimento. Temos muitos outros riscos e estamos partindo para um
quadro muito assustador para o país.