Acordei cedo, como se não estivesse de férias, na manhã de
uma quarta-feira chuvosa. Nas lembranças da noite anterior, sentia o
peso de escrever algo, talvez o melhor texto de toda a minha vida,
porque, simplesmente, parecia – parece – ser meu dever. Afinal, havia
visitado a escola em que fui alfabetizado e participar de um projeto tão
grande realizado dentro de seus muros e me comprometer a escrever sobre
essa experiência, a mim, é uma espécie de obrigação qualitativa. Não bastasse essa responsabilidade, nem tudo estava acabado; eu deveria voltar, nesta mesma manhã de quarta chuvosa, ao lócus,
colher ainda mais informações e, naturalmente, sentir dobrar o peso nos
ombros. Essa minha situação me fez lembrar as angústias de um certo
Guido, diretor de cinema italiano em Nine (2009). Ao final de deliberações com mesclas nostálgicas, ausência de cigarros e guiado pelo Felipe menino, eis meu enredo:
Dentre as maiores e reconhecidas obras brasileiras, Operários (1933)
da artista Tarsila do Amaral, figura em posição de destaque. No quadro,
percebemos a grande variação étnica existente no Brasil à época da
intensa industrialização na cidade de São Paulo – que é retratada
geometricamente em segundo plano – e que persiste, invariavelmente, na
descendente e miscigenada atualidade, em todo o país. Em entrevista à
Veja, o professor de filosofia medieval da USP, Lorenzo Mammi, declarou:
“Tarsila consegue ainda dar conta da forte imigração. Muitos povos
diferentes aparecem ali”.
Diante desta notável realidade, fica difícil não se imaginar como
parte de um todo – ou o todo numa parte –. Ainda que sejamos brancos,
possuímos traços físicos dos negros; ainda que sejamos negros, possuímos
hábitos típicos dos povos indígenas; ainda que exista o hoje, há
ascendentes que se manifestam em nossos fenótipos e correm pelas nossas
veias. Somos dotados de história.
Mesmo assim, os dados da intolerância não param de ser
contabilizados: Segundo dados do IBGE, os negros são 47,3% da população
brasileira, mas correspondem a 66% do total de pobres. No último ano,
aproximadamente 300 homossexuais foram assassinados exclusivamente por
suas orientações sexuais. Em 2012, fez 15 anos que, no emblemático caso,
o índio Galdino Jesus dos Santos foi queimado vivo num ponto de ônibus
em Brasília e, desde então, a cada mês assistimos na televisão alguma
violência contra moradores de rua. Para as mulheres, apesar de a Lei
Maria da Penha ter atenuado significativamente as estatísticas de
agressão e óbitos, cerca de dez mulheres são assassinadas a cada dia no
Brasil, segundo o DATASUS. E, finalmente, pesquisas apontam que, a cada
semana, um colunista escreve alguma asneira preconceituosa
intertextualizando com cabras e que, alguma revista, igualmente asna,
publica.
Portanto, só podemos concluir que há uma negligencia por parte da
sociedade como um todo e, de modo específico, das políticas públicas que
são escassas, ineficazes ou, ainda, estimulam a desigualdade e promovem
a rixa entre etnias, com as cotas raciais, por exemplo. Em meio ao
caos, onde se prefere não ver, a “4ª oficina de gêneros textuais –
Reconstruindo Conceitos e Atitudes” revela e aponta um caminho para se
enxergar – e consequentemente, enfrentar – a realidade atual. Embasada
pelas leis 10.639/03 e 11.645/08 a Escola Estadual Irmã Lucinda
Facchini, localizada ao norte de Cuiabá, abriu seus portões para a
sociedade com o intuito de apresentar os resultados dos trabalhos
desenvolvidos com os alunos durante o ano letivo. Idealizado pelas
professoras, respectivamente, de português e história, Jacilda de
Siqueira Pinho e Ivolina Razza, o projeto começou em 2009,
“pequinininho”, como relataram e, hoje, se orgulham da amplitude que o
projeto alçou.
Por exemplo: em 2010, os professores, junto ao uma equipe de alunos,
visitaram a aldeia Formoso, de etnia Pareci, próximo a Tangará da Serra.
Desde então, a escola continuou a manter contato com o índio que os
guiou e, este ano, os Pareci viriam até a escola. No entanto, por
problemas “burocráticos”, desses que só acontecem na leniência do poder
público, a prefeitura de Tangará não disponibilizou o ônibus – que já
havia sido confirmado – e os índios não puderam vir até a escola somar,
culturalmente, com o evento.
Apesar do imprevisto, as inúmeras manifestações artísticas não foram
abaladas: recitações, capoeira, músicas, danças, interpretações, peças
e, de um modo geral, movimento. Havia, sobretudo, corpo em movimento:
corpos se expressando e transmitindo signos de liberdade dialogando em
prol do igual, chamando a atenção para essa realidade que não é de hoje,
é de sempre.
Pensando a sociedade que é altamente questionável, tanto do ponto das
políticas públicas, da segurança, quanto da participação da mídia, como
veio condutor desse processo de espetacularização, incentivo à
violência ou negligência das disparidades, é preciso refletir. Sobre o
comportamento visto dentro os alunos e essa tal “espetacularização”, a
professora Ivolina Razza declarou que a mudança de comportamento é
“bastante forte e a mídia mostra muito a violência e eles acham que ela
deve fazer parte do cotidiano, está muito arraigada neles”.
É papel de todos nós, cidadãos, enxergar para combater, efetivamente, os problemas que as minorias
ainda enfrentam, depois de anos a fio. Afinal, como disse o senador
Rodrigo Rollemberg, “a violência não está só nas mãos de quem pratica,
mas no pensar culturalmente transmitido por gerações”. O grande êxito da
4ª oficina de gêneros textuais é desanuviar os obscurantismos,
através do reconhecimento de outras culturas e, a partir daí, provocar
um natural respeito mútuo. Conta a professora Jacilda: “percebemos
grande mudança, porque eles não conheciam a cultura afro, indígena. Essa
questão da diversidade era mais ligada a uma coisa muito distante deles
e, hoje não, hoje eles já percebem a diversidade na literatura, nas
obras de arte; conseguem relacionar o conteúdo de história com outras
disciplinas. Hoje tem mais significação pra eles. Precisava da lei”.
Projetos como este são louváveis e devem ser enaltecidos. Crescido
nessa escola que atendeu, muito bem, às necessidades, que eu considero
fundamentais para formação intelectual, cultural e pessoal de qualquer
cidadão, muito me orgulha em ver que, ainda que se tenham passado anos,
crianças e adolescentes estão tendo o mesmo aparato que eu tive na lida
com as diversidades; no incentivo do respeito a vida, ao meio, ao outro e
a natureza; no aprendizado do Ser.
Paulo Freire, muito citado nos intervalos das apresentações pela
grandiosa e sábia professora aposentada Célia Bárbara – à época de minha
infância, diretora da escola -, em sua obra Pedagogia da Indignação
diz:
Se a nossa opção é progressista, estamos a favor da vida e não da morte; a favor da equidade e não da injustiça; a favor do direito e não do arbítrio; a favor da convivência com o diferente e não com a sua negação. Não temos outro caminho senão viver plenamente com a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos.
Que possamos nos inspirar neste grande pensador ao lidar com a
violência no Brasil; que possamos multiplicar projetos como o
desenvolvido dentro da escola Lucinda Facchini, para se implantar, na
mais tenra idade, os princípios de respeito e cognição. Só assim,
poderemos nos perceber por inteiro, como uma nação, um corpo em toda a
nossa diversidade. Este é nosso maior desafio para construirmos
efetivamente uma sociedade mais justa nos baluartes de uma cultura de
paz.
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