A desmoralização social da carreira docente
http://envolverde.com.br/educacao/protesto/a-desmoralizacao-social-da-carreira-docente/
por Valerio Arcary*
“Mais valem lágrimas de derrota do que a vergonha de não ter lutado” – Sabedoria popular brasileira.
Qualquer avaliação honesta da situação das redes de ensino público estaduais e municipais revela que a educação contemporânea no Brasil, infelizmente, não é satisfatória. Mesmo procurando encarar a situação dramática com a máxima sobriedade, é incontornável verificar que o quadro é desolador. A escolaridade média da população com 15 anos ou mais permanece inferior a oito anos, e é de quatro entre os 20% mais pobres, porém, é superior a dez entre os 20% mais ricos (1). É verdade que em 1980 o Brasil era um país culturalmente primitivo que recém completava a transição histórica de uma sociedade rural. Mas, ainda assim, em trinta anos avançamos apenas três anos na escolaridade média.
1223 300x300 A desmoralização social da carreira docente
São muitos, felizmente, os indicadores disponíveis para aferir a realidade educacional. Reconhecer as dificuldades tais como elas são é um primeiro passo para poder ter um diagnóstico aproximado. A Unesco, por exemplo, realiza uma pesquisa que enfoca as habilidades dominadas pelos alunos de 15 anos, o que corresponde aos oitos anos do ensino fundamental (2). O Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) é um projeto de avaliação comparada. As informações são oficiais porque são os governos que devem oferecer os dados. A pesquisa considera os países-membros da OCDE além da Argentina, Colômbia e Uruguai, entre outros, somando 57 países.
Em uma avaliação realizada em 2006, considerando as áreas de Leitura, Matemática e Ciências, o Brasil apresentou desempenho muito abaixo da média (3). No caso de Ciências, o Brasil teve mais de 40% dos estudantes situados no nível mais baixo de desempenho. Em Matemática, a posição do Brasil foi muito desfavorável, equiparando-se à da Colômbia e sendo melhor apenas que a da Tunísia ou Quirguistão. Em leitura, 40% dos estudantes avaliados no Brasil, assim como na Indonésia, México e Tailândia, mostram níveis de letramento equivalentes aos alunos que se encontram no meio da educação primária nos países da OCDE. Ficamos entre os dez países com pior desempenho.
As razões identificadas para esta crise são variadas. É verdade que problemas complexos têm muitas determinações. Entre os muitos processos que explicam a decadência do ensino público, um dos mais significativos, senão o mais devastador, foi a queda do salário médio docente a partir, sobretudo, dos anos 1980. Tão grande foi a queda do salário dos professores que, em 2008, como medida de emergência, foi criado um piso nacional. Os professores das escolas públicas passaram a ter a garantia de não ganhar abaixo de R$ 950,00, somados aí o vencimento básico (salário) e as gratificações e vantagens. Se considerarmos como referência o rendimento médio real dos trabalhadores, apurado em dezembro de 2010, o valor foi de R$ 1.515,10 (4). Em outras palavras, o piso nacional é inferior, apesar da exigência mínima de uma escolaridade que precisa ser o dobro da escolaridade média nacional.
Já o salário médio nacional dos professores iniciantes na carreira com licenciatura plena e jornada de 40 horas semanais, incluindo as gratificações, antes dos descontos, foi R$ 1.777,66 nas redes estaduais de ensino no início de 2010, segundo o Ministério da Educação. Importante considerar que o ensino primário foi municipalizado e incontáveis prefeituras remuneram muito menos. O melhor salário foi o do Distrito Federal, R$ 3.227,87. O do Rio Grande do Sul foi o quinto pior, R$ 1.269,56 (5). Pior que o Rio Grande do Sul estão somente a Paraíba com R$ 1.243,09, o Rio Grande do Norte com R$ 1.157,33, Goiás com R$ 1.084,00, e o lanterninha Pernambuco com R$ 1.016,00. A pior média salarial do país corresponde, surpreendentemente, à região Sul: R$ 1.477,28. No Nordeste é de R$ 1.560,73. No Centro-Oeste, de R$ 2.235,59. No Norte, de R$ 2.109,68. No Sudeste, de R$ 1.697,41.
A média nacional estabelece o salário docente das redes estaduais em três salários mínimos e meio para contrato de 40 horas. Trinta anos atrás, ainda era possível ingressar na carreira em alguns Estados com ordenado equivalente a dez salários mínimos. Se fizermos comparações com os salários docentes de países em estágio de desenvolvimento equivalente ao brasileiro, as conclusões serão igualmente escandalosas. Quando examinados os salários dos professores do ensino médio, em estudo da Unesco, sobre 31 países, há somente sete que pagam salários mais baixos do que o Brasil, em um total de 38 (6). Não deveria, portanto, surpreender ninguém que os professores se vejam obrigados a cumprir jornadas de trabalho esmagadoras, e que a overdose de trabalho comprometa o ensino e destrua a sua saúde.
O que é a degradação social de uma categoria? Na história do capitalismo, várias categorias passaram em diferentes momentos por elevação da sua estatura profissional ou por destruição. Houve uma época no Brasil em que os “reis” da classe operária eram os ferramenteiros: nada tinha maior dignidade, porque eram aqueles que dominavam plenamente o trabalho no metal, conseguiam manipular as ferramentas mais complexas e consertar as máquinas. Séculos antes, na Europa, foram os marceneiros, os tapeceiros, e na maioria das sociedades os mineiros foram bem pagos. Houve períodos históricos na Inglaterra – porque a aristocracia era pomposa – em que os alfaiates foram excepcionalmente bem remunerados. Na França, segundo alguns historiadores, os cozinheiros. Houve fases do capitalismo em que a estatura do trabalho manual, associado a certas profissões, foi maior ou menor.
A carreira docente mergulhou, nos últimos 25 anos, numa profunda ruína. Há, com razão, um ressentimento social mais do que justo entre os professores. A escola pública entrou em decadência e a profissão foi economicamente desmoralizada e socialmente desqualificada, inclusive, diante dos estudantes.
Os professores foram desqualificados diante da sociedade. O sindicalismo dos professores, uma das categorias mais organizadas e combativas, foi construído como resistência a essa destruição das condições materiais de vida. Reduzidos às condições de penúria, os professores se sentem vexados. Esse processo foi uma das expressões da crise crônica do capitalismo. Depois do esgotamento da ditadura, simultaneamente à construção do regime democrático liberal, o capitalismo brasileiro parou de crescer, mergulhou numa longa estagnação. O Estado passou a ser, em primeiríssimo lugar, um instrumento para a acumulação de capital rentista. Isto significa que os serviços públicos foram completamente desqualificados.
Dentro dos serviços públicos, contudo, há diferenças de grau. As proporções têm importância: a segurança pública está ameaçada e a justiça continua muito lenta e inacessível, mas o Estado não deixou de construir mais e mais presídios, nem os salários do judiciário se desvalorizaram como os da educação; a saúde pública está em crise, mas isso não impediu que programas importantes, e relativamente caros, como variadas campanhas de vacinação, ou até a distribuição do coquetel para os soropositivos de HIV, fossem preservados. Entre todos os serviços, o mais vulnerado foi a educação, porque a sua privatização foi devastadora. Isso levou os professores a procurarem mecanismos de luta individual e coletiva para sobreviverem.
Há formas mais organizadas de resistência, como as greves, e formas mais atomizadas, como a abstenção ao trabalho. Não é um exagero dizer que o movimento sindical dos professores ensaiou quase todos os tipos de greves possíveis. Greves com e sem reposição de aulas. Greves de um dia e greves de duas, dez, quatorze, até vinte semanas. Greves com ocupação de prédios públicos. Greves com marchas.
Conhecemos, também, muitas e variadas formas de resistência individual: a migração das capitais dos Estados para o interior onde a vida é mais barata; os cursos de administração escolar para concursos de diretor e supervisor; transferências para outras funções, como cargos em delegacias de ensino e bibliotecas. E, também, a ausência. Tivemos taxas de absenteísmo, de falta ao trabalho, em alguns anos, inverossímeis.
Não obstante as desmoralizações individuais, o mais impressionante, se considerarmos o futuro da educação brasileira, é a valente resistência dos professores com suas lutas coletivas. Foram e permanecem uma inspiração para o povo brasileiro.
Notas:
(1) Os dados sobre desigualdades sociais em educação mostram, por exemplo, que, enquanto os 20% mais ricos da população estudam em média 10,3 anos, os 20% mais pobres têm média de 4,7 anos, com diferença superior a cinco anos e meio de estudo entre ricos e pobres. Os dados indicam que os avanços têm sido ínfimos. Por exemplo, a média de anos de estudo da população de 15 anos ou mais de idade se elevou apenas de 7 anos, em 2005, para 7,1 anos em 2006. Wegrzynovski, Ricardo, Ainda Vítima das Iniquidades em http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=3962. Consultado em 21/2/2011.
(2) Informações sobre o Pisa podem ser procuradas em http://www.unesco.org/new/en/unesco/. Consultado em 21/2/2011.
(3) O relatório citado organiza os dados de 2006, e estão disponíveis em http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001899/189923por.pdf. Consultado em 19/2/2011.
(4) A pesquisa mensal do IBGE só é realizada em algumas regiões metropolitanas. Não há uma base de dados disponível para aferir o salário médio nacional. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/pme_201012pubCompleta.pdf. Consultado em 19/2/2011.
(5) Uma pesquisa completa sobre os salários iniciais em todos os Estados pode ser encontrada no estudo disponível em http://www.apeoc.org.br/extra/pesquisa.salarial.apeoc.pdf.
(6) http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/unesco.htm.
* Valerio Arcary é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF-SP) e doutor em História pela Universidade de São Paulo.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.
(Correio da Cidadania)
Repassando.
Artigo de Otaviano Helene, publicado originalmente em Caros Amigos nº 53, junho, e enviado ao JCEmail.
Nossa situação educacional não mudou significativamente na última década: tivemos um pequeno aumento na educação infantil, um pequeno retrocesso nas taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio e um crescimento do ensino superior. Durante toda a década, continuamos entre a terça parte dos países sul americanos mais atrasados em termos educacionais.
Segundo dados sistematizados pelo Instituto de Estatística da Unesco, nossa taxa de alfabetização de adultos está entre as três piores, de um conjunto de 11 países do continente para os quais há dados disponíveis, juntamente com Peru e Equador. Quanto à alfabetização dos 15 aos 24 anos, que reflete o sistema escolar de um país em um período mais recente, estamos entre os quatro piores. No ensino superior, nossa taxa de inclusão está entre as três mais baixas da América do Sul, apenas maior que as da Guiana e do Paraguai.
O objetivo dessa comparação com países vizinhos não é transformar a análise do desempenho educacional em uma espécie de competição, onde o ranqueamento é o que importa. O objetivo é mostrar que, embora não tenhamos alguns dos problemas que dificultam o desenvolvimento educacional dos países citados, como populações cultural e lingüisticamente diferenciadas e/ou rendas per capita da ordem de metade da brasileira, não conseguimos promover nossa educação a um patamar adequado.
E se não superamos nosso atraso não é porque não conhecemos os problemas que afetam nosso sistema educacional. Afinal, temos um sistema de avaliação, ainda que criticável em vários aspectos, capaz de fornecer indicações bastante precisas dos problemas existentes em cada um dos níveis educacionais, em cada área do conhecimento, em cada região do país e em cada rede ou sistema de ensino. Mas, infelizmente, nenhum dos muitos problemas revelados por essas avaliações está sendo realmente atacado. Muitas vezes, seus resultados têm sido usados apenas para responsabilizar estudantes e desqualificar educadores. Frases como "só não estuda quem não quer" ou "os professores são responsáveis pelo mau desempenho dos estudantes" são ditas de forma irresponsável. Não há como acreditar, realmente, que as quase um milhão de crianças que abandonam o ensino fundamental a cada ano o fazem porque não querem estudar ou que a responsabilidade por isso é dos professores.
O sistema educacional brasileiro foi, como todos os demais setores de interesse público e coletivo, construído segundo os interesses egoístas, míopes e imediatistas das elites nacionais. Se ele vai mal não é por causa de alguma dificuldade intrínseca que tenhamos, como pode ser o caso de países com populações de línguas, hábitos e culturas diferentes, ou cuja religião dominante impõe fortes restrições à escolarização (em especial de mulheres), ou que passam ou passaram por guerras internas ou externas, ou que foram invadidos por potências estrangeiras, ou que, pobres, sofrem ou sofreram grandes catástrofes naturais, ou, ainda, países que só se livraram recentemente das amarras impostas pelos colonizadores. Nossa educação escolar é ruim e muito desigual porque tem sido abandonada pelo setor público, o que permitiu, inclusive, que grande parte dela se transformasse em simples mercadoria. E esse é um projeto nacional mantido, praticamente sem alterações, há bastante tempo.
O que devemos fazer? - Uma das condições responsáveis pelo nosso baixo padrão escolar é a falta de recursos públicos. Para superarmos os atrasos acumulados e, em uma década, entrarmos em um novo patamar, precisaríamos mais investimentos públicos, estimados em cerca de 10% do PIB. Foi dessa forma, com recursos, que outros países superaram seus atrasos educacionais. E esse valor não é alto, pois para atingi-lo, sem sacrificar outros aspectos da vida nacional, precisaríamos transferir para o setor educacional, durante alguns poucos anos, apenas uma pequena parte do crescimento econômico. Se não fazemos isso, não é porque o país não pode, mas, sim, porque não quer. Vale mesmo lembrar que os retornos econômicos dos investimentos em educação são altíssimos e, portanto, se pagam em pouco tempo. Ou seja, se destinarmos uma fração maior do PIB para a educação pública, ele, o PIB, crescerá por conta dos investimentos feitos e, em poucos anos, o balanço, meramente econômico, já será positivo.
Esses recursos adicionais são necessários para melhorar as condições de estudo e trabalho nas escolas públicas, incluir crianças nas creches e escolas de educação infantil, desenvolver programas de gratuidade ativa e de busca de estudantes prematuramente evadidos, melhorar os salários dos trabalhadores da educação (cuja remuneração é da ordem da metade da remuneração dos demais trabalhadores com igual nível educacional) e ampliar e melhorar e ensino médio. São necessários recursos também para desenvolver políticas adequadas de expansão do ensino superior público que considere as necessidades e possibilidades de cada região do país, o que traria enormes benefícios sociais, econômicos e culturais.
Aumentar os recursos públicos para a educação, embora não suficiente, é absolutamente necessário; como corolário, manter o subinvestimento é condição suficiente para não superarmos nosso atraso escolar.
Para mudar a atual situação é necessária uma mobilização consciente e muito intensa por parte das entidades e pessoas comprometidas com a construção de um país soberano e social, cultural e economicamente desenvolvido. Precisamos intensificar, ou recuperar, a capacidade de luta dos movimentos sociais organizados, especialmente dos movimentos de professores, educadores e estudantes, e estabelecer, com as demais entidades comprometidas com os interesses nacionais, uma pauta conjunta de luta pela educação pública, laica, republicana, democrática e igualitária.
Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da USP.
Link:http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=77999
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