Julio Cesar de Tavares,
antropólogo, Professor da UFF
Publicado no Brasil
Economico 7/05/2013
Ao ler no
jornal de sábado os comentários do Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Joaquim Barbosa, em San José, na Costa Rica, durante Congresso da Unesco sobre
liberdade de imprensa constatei que foram necessários mais de sessenta anos
para que se caminhasse da denuncia da prática racial ao seu combate efetivo. Me
refiro, neste caso, à Lei Afonso Arinos, promulgada em 1951 como reação à
denuncia de racismo vivido na carne pela antropóloga negra, americana,
Katherine Durham ao contrariar as regras de um grande hotel, em São Paulo, que,
com a placa “negros só pelos fundos”, proibia a entrada de negros pela porta
principal.
Realmente
vivemos um momento de mudanças impensáveis há 60 anos, quando o governo
democrático de Getúlio Vargas ensaiava políticas inclusivas universalistas.
Hoje, tentamos demolir o nosso “muro de Berlim”, o racismo envergonhado, que
lentamente, e já não tão sutil, limita a presença de negros e pardos na ponta
das áreas profissionais mais refinadas e mais próximas do campo do poder,
quanto restringe os mesmos da condição de usuário pleno da justiça, exatamente
pela falta de proximidade do poder.
Conforme
apontado pelo Ministro Barbosa vê-se com frequência o reflexo deste processo no
Judiciário brasileiro na condenação dos “desvalidos” – pobres e negros – e na
impunidade dos “poderosos”. O mais
marcante deste ciclo vicioso é a sua natureza explicitamente cultural porquanto
geradora do imbróglio que acomete países pós-coloniais, organizados na
supremacia da elite do grupo racial indo-europeu-caucasiano e que repousa na preservação
de privilégios e recursos patrimoniais seculares. É assim no Brasil. Este processo adquire rebatimento no plano
dos poderes judiciário, executivo, legislativo e da própria máquina da comunicação
social, inegavelmente, os quatro elementos preponderantes na definição da
governança e políticas de estado. Daí, pode-se
considerar a tímida representação de negros e pardos no contexto simbólico e
administrativo do país. E explica também a ausência de jornalistas não-brancos.
O
aprofundamento da democracia obriga-nos a estimular a urgência de diagnósticos permanentes
e objetivos para compreender esta dificuldade, cuja natureza é cultural sim,
conforme bem apontou o ministro Barbosa, mas também de ordem cognitiva. Cultural por que faz parte do emaranhado de
símbolos e significações que criamos para dar sentido, justificar e reproduzir
as rotinas no mundo que inventamos como brasileiros, a começar pela idéia de
que somos exclusivos no que fazemos tanto quanto cordiais e tiranicamente
felizes. Na ação repetitiva desta ilusão, a tornamos crença
marcante da condição de brasileiros.
Junto com esta visão de mundo naturalizado produz-se uma posição de
poder, na qual o sujeito branco vê a si mesmo em projeção de destaque. Este lugar se refere aos privilégios
simbólicos objetiva e subjetivamente instalados para operar as facilidades de
acesso do grupo branco e a reprodução do preconceito e da discriminação racial,
sobre os não-brancos. Assim age o
racismo.
A outra dificuldade, todavia,
encontra-se na cognição social e é corolário da
cultura. Como tal, compreende os efeitos
da permanente atividade expressiva de dissimulação das coisas para que não pareçam
o que realmente elas são. Esta operação
atua sobre a linguagem no interior do nosso idioma emergindo como responsável
pelos bloqueios da memória e apagamentos das experiência de reconhecimento,
respeito e afirmação do direito do outro. Manifesta-se como a denegação
apontada por Freud, processo pelo qual o indivíduo, embora consiga formular
seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até então, recalcados, mantem-se em
permanente negação dos mesmos. Enfim, trata-se da recusa a perceber um fato que
se impõem no mundo exterior, o racismo.
Ao mesmo tempo que o admite, se recusa a assumir-se como agente do
mesmo. E desta posição pode atribuir ao outro aquilo que não atribui-se
a si mesmo, acrescido, é claro do eficiente ‘jeitinho’ de adocicar de modo
dissimulativo o lado amargo desta interação. E, com a repetição natural e
persistente desta pratica e de determinadas percepções de mundo vai-se disseminando
a ideologia da supremacia branca, a branquitude. Essa supremacia se configura
por meio de variados mecanismos de exclusão genocida de natureza econômica,
política e cultural que resultam de atividades originadas em áreas que
tradicionalmente cooperam com a elaboração da arquitetura do estado brasileiro.
Assim estabelecida, a operação da
supremacia promove uma profunda injustiça
cognitiva, a ausência de qualquer ensinamento que reconheça, respeite e
qualifique moral, emocional e culturalmente o universo afro-brasileiro e o
incorpore de modo efetivo e não excepcional, ao imaginário nacional. É dessa injustiça cognitiva que advém o
profundo recalcamento dos mecanismos de identidade dos sujeitos pertencentes aos
grupos étnicos subordinados. Recalcamentos
que se encontram centrados no desrespeito às singularidades culturais e
religiosas, às experiências civilizatórias e às auto definições que tornaram
efetiva a construção do Brasil.
Uma nova atitude diante do mundo
exigirá que os brasileiros se abram para desconstruir e arremessar para fora de
suas cabeças os elementos inculcados desde a educação elementar como
pertencentes e excepcionais à cultura brasileira. O passo a ser dado nesse
sentindo consiste em trabalhar na desconstrução dos estereótipos, na
desconstrução dos próprios recalcamentos e estigmas, durante séculos alojados
em todos nós. Esta pode ser uma direção
para colaborar com o refinamento do modo de olhar e cada vez tornar plural a
democracia e diminuta a opressão.
--
Julio Cesar de Tavares
Universidade Federal Fluminense
Departamento de Antropologia
Campus do Gragoatá, Bloco O, 3º.and, s/426.
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