O cientista político e historiador
Luiz Felipe de Alencastro comenta a batalha adiada da igualdade racial nas Forças Armadas, em artigo publicado no jornal
Folha de S. Paulo, 02-09-2012.
Eis o artigo.
Impermeáveis às políticas afirmativas do governo Dilma, as Forças Armadas não promovem a formação de altos comandantes cujo rosto espelhe o da população brasileira. Índia, África do Sul e EUA (que destacaram oficial negro para comandar frota no Atlântico Sul) dão valor estratégico à questão racial nas elites militares.
Nas vésperas do Sete de Setembro, cabe lembrar as perspectivas sobre as Forças Armadas inscritas no "Livro Branco da Defesa Nacional" (LBDN), apresentado em junho à presidente da República e ao Congresso.
Organizado pelo ministro da Defesa,
Celso Amorim, o
Livro Branco
constitui uma iniciativa original. Tanto na forma quanto no seu
conteúdo. Faltou, na imprensa e nos meios políticos e universitários, um
debate à altura das análises elaboradas no
LBDN. Pela
primeira vez, a reflexão sobre as Forças Armadas e a diplomacia estão
associadas num documento governamental que analisa as relações de força
no mundo atual.
Resta que o LBDN não aborda um problema importante -de repercussão nacional e internacional-, que Amorim ajudou a começar a resolver no Itamaraty.
Problema com o qual ele e seus sucessores no atual ministério também
terão que lidar: a discriminação racial não escrita que exclui negros e
mulatos do alto oficialato das Três Armas.
No
Itamaraty, o assunto foi abafado durante muito tempo. Entrou pela primeira vez em pauta quando o presidente
Jânio Quadros, em 1961, na época da independência das colônias africanas, nomeou o escritor
Raimundo Souza Dantas (1923-2002) embaixador em
Gana.
Primeiro e único embaixador negro desde a Independência, Souza Dantas escreveu "África Difícil, Missão Condenada: Diário" (1965), que narra a discriminação de que foi vítima, por parte de intelectuais e diplomatas brasileiros, no seu posto na África. Quando o livro saiu, a ditadura já sufocava o debate sobre esse e outros assuntos.
Agindo como pau-mandado do colonialismo português, o Itamaraty perseguiu o então diplomata e futuro dicionarista Antônio Houaiss (1915-99). Membro da Comissão de Descolonização da ONU, Houaiss dialogava com os movimentos independentistas da África lusófona. Como narra o embaixador Ovídio de Andrade Melo, em seu livro "Recordações de um Removedor de Mofo no Itamaraty" (2009), a pedido de setores salazaristas, Houaiss foi cassado e demitido do Itamaraty, acusado de ser "inimigo de Portugal".
No entanto, cada vez que o governo abria uma embaixada na
África, inclusive nos países lusófonos, já escaldados pela colaboração de
Gilberto Freyre (1900-87)
com o colonialismo salazarista, escancarava-se um paradoxo: como
acreditar que o Brasil era uma "democracia racial" se todos os
diplomatas, e até os contínuos da embaixada, eram brancos? A branquidade
encenada pelos diplomatas brasileiros entravava a política do Brasil na
África.
Com a redemocratização, o debate voltou à ordem do dia. Em 2002,
iniciou-se o programa Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia.
Implementado pelo Itamaraty, o programa concede a afrodescendentes
bolsas de preparação ao concurso à carreira diplomática.
A necessidade de aproximar o rosto interno do rosto externo do país foi sublinhada pelo então presidente Fernando Henrique,
em dezembro de 2001: "Precisamos ter um conjunto de diplomatas -temos
poucos- que sejam o reflexo da nossa sociedade, que é muliticolorida e
não tem cabimento que ela seja representada pelo mundo afora como se
fosse uma sociedade branca, porque não é".
Sob a presidência de Lula, o processo se consolidou. Em julho de 2008, em Brasília, o então chanceler Celso Amorim
enfatizou que a democracia é "incompatível" com a discriminação,
acrescentando: "Acreditávamos que éramos uma democracia racial. Hoje
sabemos que isso não é verdade".
AJUSTE
Contudo, o ajuste entre o rosto interno e o rosto externo do país é longo e difícil. No último dia 18 de agosto, reportagem de Flávia Foreque
na Folha revelou que, dentre as 40 novas embaixadas abertas na África,
35 têm um corpo de diplomatas inferior ao previsto. Por quê? Porque
alguns itamaratecas, que se acham, evitam as embaixadas africanas,
acreditando que tais postos rebaixam suas carreiras.
Celso Amorim deixou o Itamaraty e, depois de uma pausa, assumiu o ministério da Defesa. Graças à sua iniciativa, redigiu-se o "Livro Branco". Com 270 páginas, o documento contou com o aporte de vários ministérios e duas centenas de colaboradores.
De saída, o LBDN salienta as bases da geopolítica
nacional: "O Brasil dá ênfase a seu entorno geopolítico imediato,
constituído pela América do Sul, o Atlântico Sul e a costa ocidental da
África". Mais adiante, a importância do espaço oceânico é reiterada,
porquanto o Brasil é o "país com maior costa atlântica do mundo".
Citado no texto introdutório da presidente
Dilma Rousseff, o
pré-sal é objeto de mais quatro referências no
LBDN.
A posse da Zona Econômica Exclusiva de 200 milhas marítimas (onde está o
pré-sal) garantida pela Convenção da ONU de 1994, que foi assinada por
152 países, é destacada.
Mas o documento também observa que nem
todos países aderiram à convenção, "inclusive grandes potências",
circunstância que "pode se tornar, no futuro, uma fonte de
contenciosos". O que o LBDN não diz, mas está nos jornais, é que a única
das "grandes potências" não aderente à convenção de 1994 é os Estados
Unidos.
4ª FROTA
O tom diplomático do texto evita ainda referências a uma novidade que
reconfigura o Atlântico Sul, a volta da 4ª Frota americana.
Estabelecida em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), a 4ª
Frota foi desmembrada em 1950. Em 2008, foi restabelecida para operar no
Caribe e nos mares da América Central, América do Sul e África
Ocidental.
Seu renascimento foi saudado pelo "Navy Times", jornal da marinha de
guerra americana: "Quase 60 anos depois de ter fechado, a 4ª Frota, que
conduziu a caçada aos submarinos alemães no Atlântico Sul, está de
volta. Desta vez, para caçar traficantes de drogas no Caribe".
Na América Central e na América do Sul, pouca gente acreditou nessa
fita da caça aos piratas do Caribe. O governo argentino discutiu o
assunto com o governo americano. Mas a reação mais incisiva veio do
Brasil. Respondendo a jornalistas argentinos, em setembro de 2008, o
presidente Lula declarou: "Estou preocupado com a 4ª Frota americana, porque ela vai exatamente para o lugar onde nós achamos petróleo".
Tal armada de porta-aviões, cruzadores e submarinos é comandada por um ilustre oficial negro, o contra-almirante Sinclair M. Harris. Feliz coincidência para o prestígio do contra-almirante Harris e
para o lustre da U.S. Navy, sua poderosa esquadra singra entre a costa
atlântica africana e o país americano que conta com o maior número de
afrodescentes.
Neste contexto apenas subentendido no LBDN, a Zona
de Paz e Cooperação do Atlântico Sul ganha todo o seu relevo. Instaurado
pela ONU em 1986, esse tratado abrange o Brasil, Argentina, Uruguai e
21 países africanos. Programas de colaboração militar estão em curso
nesses países, com destaque para a Namíbia -cuja costa
situa-se em latitudes idênticas à faixa do litoral brasileiro contendo o
pré-sal-, a qual envia boa parte dos oficiais de sua Marinha de Guerra
para se formarem no Brasil.
O LBDN assinala uma cooperação mais direta com a África do Sul, no intercâmbio de oficiais e no desenvolvimento do míssil A-Darte e, mais além, com a Índia, no avião de transporte Embraer 145, dotado de radar indiano.
A colaboração com a África do Sul e a Índia é reforçada pelo
Fórum Ibas, reunindo o Brasil aos dois países. Fundado em 2003, sob o impulso do então chanceler
Celso Amorim, o
Ibas é
definido como "um mecanismo de coordenação entre três países
emergentes, três democracias multiétnicas e multiculturais, que estão
determinados a redefinir seu lugar na comunidade de nações".
Efetivamente, o Brasil, a África do Sul e a Índia constituem
um grupo exemplar de democracias multiétnicas e multiculturais. Não há
quem duvide disso, quando percorre as ruas das grandes cidades desses
países.
Salvo em algumas altas instâncias, como as Academias Militares. Ali, o
rosto dos cadetes, dos futuros oficiais superiores brasileiros,
predominantemente branca, destoa da igualdade étnica e multicultural do
oficialato das Forças Armadas da África do Sul e da Índia. Destoa,
sobretudo, da sociedade brasileira.
Graças aos avanços
constitucionais do país, as Forças Armadas têm evoluído. Mulheres
passaram a ser admitidas nas Três Armas, embora suas funções sejam
geralmente restritas aos serviços administrativos e de saúde.
Também é certo que há, desde o século 19, certo número de oficiais
afrodescendentes e que as escolas militares não vetam mais certas
categorias da população.
Assim, como revelou o historiador Fernando Rodrigues, da UFRJ, na reportagem de Leonencio Nossa,
no jornal "O Estado de S. Paulo", em 12 de março de 2011, até o final
da Segunda Guerra Mundial (1939-45), as escolas militares barravam
formalmente a entrada de negros, judeus, islâmicos, filhos de pais
separados e filhos de estrangeiros.
SAITO
Muita coisa mudou para melhor. Em 2007, a comunidade nipo-brasileira saudou a nomeação no comando da Aeronáutica do brigadeiro Juniti Saito,
nascido em Pompeia (SP) e filho de imigrantes japoneses. No ano
seguinte, viajando a Tóquio como convidado especial do governo japonês, o
comandante foi recebido pelo Imperador Akihito.
Saito visitou também uma escola de filhos de
imigrantes brasileiros. Segundo o site nikkeypedia.org.br, ele declarou
na saída: "Eu me identifiquei com aquelas crianças porque passei o mesmo
que elas quando cheguei ao Brasil. Até os cinco anos de idade, só
falava japonês dentro de casa". A menos que tenha sido o resultado de um
erro de transcrição, o lapso do brigadeiro Saito ("quando cheguei ao Brasil") é significativo.
Mostra o estranhamento e a emoção da "chegada" à escolinha paulista, e
dá mais força ao seu mérito e à competência da Escola Militar na
condução de sua trajetória até a chefia da Aeronáutica.
Da mesma forma que a carreira do contra-almirante Harris impressiona os oficiais africanos e brasileiros, o dinamismo social e democrático que impulsionou a carreira do comandante Saito deve ter impressionado os oficiais do Japão.
No Extremo Oriente, o retrato do oficialato brasileiro, apresentado
como um corpo militar multiétnico, ganhou foros de verossimilhança. No
Extremo Ocidente é outra história.
GUARARAPES
Sabe-se que a hierarquia militar sempre afirmou sua consonância com o colorido da sociedade. Como outros documentos oficiais, o LBDN se refere à primeira Batalha de Guararapes (1648),
palco da vitória icônica das Forças Armadas: "Foi o evento histórico
considerado gênese do Exército, nessa ocasião as forças que lutaram
contra os invasores foram formadas genuinamente por brasileiros
(brancos, negros e ameríndios)".
Depois disso, os holandeses se renderam, a população indígena
declinou, chegaram muito mais africanos, mais portugueses, outros
europeus, e também os levantinos e os asiáticos que formaram a atual
sociedade brasileira.
As Forças Armadas mudaram, mas a sociedade mudou mais rápido. A
referência encantatória às forças brasileiras na Batalha de Guararapes,
pintadas como um exército multiétnico, não cola à realidade. Não é
preciso fazer um desenho para mostrar que há um desequilíbrio gritante
no escalonamento hierárquico das Três Armas.
Como em outros setores governamentais, os brancos sempre dominaram as
patentes mais elevadas, em detrimento da presença dos afrodescendentes,
que compõem atualmente a maioria dos recrutas e da população do país.
Para retomar a análise do então presidente FHC, trata-se de uma situação que "não tem cabimento".
A doutrina constitucional e a dinâmica democrática tem tornado a
sociedade brasileira mais justa. Desse modo, a Constituição decreta que
"todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza"
(art. 5°), e completa o preceito com as políticas afirmativas,
determinando a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos, nos termos da lei" (art. 7° § 20).
Consoantemente, a presidente Dilma Rousseff promove a nomeação de mulheres nos altos cargos, numa política pública para ninguém botar defeito.
De seu lado, o Judiciário e o Legislativo têm procurado corrigir as
desigualdades herdadas do passado para reforçar a democracia. No mês de
abril, o Supremo Tribunal Federal decidiu, unanimemente, que as cotas raciais nas Universidades estavam em conformidade com a Constituição.
Como é notório, o STF é raras vezes unânime em seus
julgamentos. A concordância dos ministros sobre matéria tão controversa,
e combatida pela grande maioria dos editorialistas, conferiu mais peso
ainda à decisão, que tornou-se jurisprudência.
Após longo estudo, o STF reconheceu que existe no Brasil discriminação
étnica estrutural -embora não inscrita nas leis-, que as universidades
públicas tem o direito constitucional de combater.
Na sequência, o
Congresso aprovou a lei que reserva 50% das vagas das universidades
federais para estudantes de escolas públicas. Metade das cotas, ou 25%
das vagas, vai para estudantes cujas famílias tenham renda até 1,5
salário mínimo. Os outros 25% das vagas são reservados aos estudantes
negros, pardos ou indígenas. Persistem dúvidas sobre a aplicação da lei
no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), que depende do Ministério
da Defesa.
Independentemente das Academias Militares, os oficiais superiores estão cada vez mais envolvidos na política externa. Aliás, o LBDN registra
a frequente "participação articulada de militares e diplomatas em
fóruns internacionais [...] na tarefa de defender, no exterior, os
interesses brasileiros".
Cedo ou tarde a branquidade do oficialato entravará o papel
internacional das Forças Armadas. O acomodamento nacional -tão bem
resumido na frase "Imagina na Copa!"- pode continuar esperando que as
coisas, na hierarquia militar e alhures, evoluam a partir de críticas
externas.
A frase citada acima, e seu complemento carioca "Imagina na
Olimpíada!", tem duplo sentido. O significado imediato mostra que se
está apreensivo com a chegada de tanta gente de outros países.
Menos
óbvio, o segundo sentido deixa entender que se espera uma melhoria nos
serviços públicos, na telefonia celular, nos aeroportos. Assim, o bordão
"Imagina na Copa!" revela também um comportamento acomodado e
subalterno: já que os cidadãos (brasileiros) não impõem respeito, vamos
tirar proveito do respeito imposto pelos consumidores (estrangeiros).
Como sucedeu no Itamaraty, o apelo à representação multiétnica, à
aproximação entre o rosto multicolorido dos recrutas e o rosto dos
oficiais superiores, poderá também vir de fora para dentro, das
parcerias militares desenvolvidas com países do Caribe e da África, e até com a 4ª Frota americana.
Não obstante, no seu discurso de posse, Celso Amorim fez uma afirmação que indicava sua intenção de não aceitar acomodamentos e subalternidades.
De fato, na sua fala, Amorim propôs uma gestão mais
democrática no Ministério da Defesa: "Devemos valorizar a discussão de
temas como direitos humanos, desenvolvimento sustentável e igualdade de
raça, gênero e crença". Tais temas não sofrem contestação nas Forças
Armadas.
Salvo a discussão do tema da igualdade de raça. Tão presente na sociedade brasileira, tão ausente no "Livro Branco da Defesa Nacional".